A sociedade que nunca parava
O vírus atacava o cérebro de uma maneira muito específica e pouco compreendida. O que se sabia era aquilo que os olhos ensinavam: o ócio…
O vírus atacava o cérebro de uma maneira muito específica e pouco compreendida. O que se sabia era aquilo que os olhos ensinavam: o ócio matava. Somente as pessoas que estavam em repouso sofriam seus efeitos.
Ou seja, quando cérebro e corpo entravam, juntos, em modo descanso, uma espécie de AVC entrava em ação e a pessoa podia morrer. E geralmente era isso que acontecia. A taxa de letalidade mundial estava em assombrosos 60%.
Não restava muita saída a não ser a produtividade incondicional e contínua. E a forma que a sociedade encontrou para lidar com o vírus era estar o tempo inteiro fazendo alguma coisa. No início estranhou-se muito, pois é difícil estar sempre em atividade. Mas os seres humanos são animais flexíveis e rapidamente se adaptam quando exigidos. A vida passou a ser um eterno compromisso.
Após trabalharem por oito horas, as pessoas entravam em carros ou no transporte público ouvindo podcasts e audiobooks, para a mente ficar ativa. Exercícios na academia possuíam trilha sonora parecida. Um encontro em um bar com amigos ou uma festa também serviam, pois as conversas mantinham o cérebro em movimento e a dança fazia o mesmo com o corpo.
Ao chegar em casa, nada de folga. Era ligar rapidamente uma série ou filme, manter uma conversa com amigos por algum aplicativo de mensagens instantâneas, responder e-mails, ler o que dava para ser lido até o sono chegar. Ficar elocubrando sobre coisas inúteis na cama não era recomendado, então remédios para ajudar a dormir rápido estavam ao lado da cama de todo mundo. Sim, dormir estava fora de risco, por algum motivo.
As pessoas acordavam já ouvindo um podcast enquanto o café da manhã era comido em pé mesmo. Mais notícias e audiobooks indo para o trabalho e a rotina recomeçava. Ao longo do dia, todos os pequenos intervalos eram preenchidos com interações digitais. Conversas constantes e infinitas. O celular atuava como o pior inimigo do ócio. Logo, ele era ótimo.
Para facilitar as coisas, os governos flexibilizaram as leis e tornou-se permitido trabalhar mais que 40 horas semanais. A vida pessoal e a vida profissional se fundiram. Era impossível dizer se uma pessoa estava em horário de trabalho ou não.
Com o tempo, o psicológico das pessoas começou a pagar seu preço por tamanho esforço. Crises, síndromes, transtornos, de tudo acontecia dentro das nossas mentes. Drogas e tarjas pretas mantinham as coisas sob controle.
Outro que também pagou seu preço: o planeta. Alimentar o fazer constante exigia muitos recursos e, estando todos proibidos de parar, essa pauta não tinha tempo para ser discutida.
Era desgastante, mas necessário. Mesmo com os diversos problemas decorrentes da vida produtiva ininterrupta, as pessoas seguiam fazendo coisas o tempo todo. Quando a vida está em risco a gente é capaz de cada coisa, né?
Essa produtividade seguiu como norma por tanto tempo que isso virou o normal, a ponto de não lembrarmos mais como era não fazer nada. Mesmo após o vírus deixar de ser um perigo, o costume continuou. Era a única forma que sabíamos viver.
Até que um novo vírus nasceu. Esse outro também atacava o cérebro de uma maneira muito específica e pouco compreendida, e só o que se sabia era aquilo que os olhos ensinavam: ele matava as pessoas quando ativas. Ou seja, estava a salvo quem parava de fazer coisas.
O ócio virou cura. Mas a gente não sabia mais como fazer isso.
Ninguém sabia ficar sem trabalhar. Ninguém sabia almoçar sem ter um vídeo ou série passando ao fundo. Ninguém sabia tomar banho sem ouvir um podcast. Ninguém sabia como ficar longe da sua caixa de entrada. Ninguém sabia ficar o final de semana em casa. Ninguém sabia ficar sozinho com seus próprios pensamentos. Ninguém sabia ficar parado. Ninguém sabia ficar em silêncio.
Mas a humanidade, novamente, reaprendeu, e depois de muito penar, o vírus foi controlado. Porque quando a vida está em risco a gente é capaz de cada coisa, né?
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