As pessoas que esqueceram de tudo
Diferente de todos os outros, esse vírus não causava dor ou debilitação. Não levava pessoas para os hospitais e não deixava ninguém de…
Diferente de todos os outros, esse vírus não causava dor ou debilitação. Não levava pessoas para os hospitais e não deixava ninguém de cama. Tampouco era fatal, você não tinha chance de morrer caso pegasse.
Quer dizer, até tinha. Quem esquece o que uma arma pode fazer ou o que significa as cores de um semáforo pode sofrer um acidente fatal. E quem pegava esse vírus esquecia de tudo. De uma hora para outra, toda memória desaparecia. E muitas são as consequências quando algo assim acontece.
Logo que o vírus surgiu ele não soou como ameaça. “É um problema que está lá do outro lado do mundo”, pensavam as pessoas, e a vida seguiu sem muita preocupação. Só que a doença não tardou em atravessar fronteiras, pegando toda uma sociedade despreparada.
Por falta de testagem, algumas cidades demoraram para perceber que a infecção havia chegado. Outras tentaram manter a normalidade adotando medidas para estimular um parco comércio. Também tinha as pessoas que não acreditavam em seus efeitos, propagando o vírus inconsequentemente.
Tudo isso contribuiu para o planeta, em questão de semanas, estar envolto em uma pandemia. Com atraso, a sociedade finalmente percebeu a seriedade do assunto e se trancafiou em casa. O comércio parou, o trabalho virou remoto, aeroportos fecharam, as cidades tornaram-se fantasmas. Ninguém queria ter sua memória apagada. Porém, o estrago já havia sido feito e um terço da população mundial se infectou. Estamos falando aqui de quase três bilhões de pessoas. Uma multidão que não sabia mais seus nomes, suas idades, onde estavam, o que era uma lâmpada, um chuveiro, um restaurante, um cartão de crédito, higiene pessoal, livros ou o Sol.
Sequer podiam falar, pois tudo que sabiam sobre comunicação havia sido perdido. Eram computadores sem um sistema operacional. Recém-nascidos aprendendo a viver em um mundo novo e estranho. E quando a pandemia foi finalmente controlada, a urgência da vez passou a ser a forma como a humanidade poderia ajudar essas pessoas a ”voltarem à vida”, a expressão comum usada pela mídia. Era insustentável ter tanta gente fora da vida da sociedade, sem empregos, sem conhecimento e sem contribuir para o sistema. Tornou-se obrigatório que essas pessoas reaprendessem como as coisas funcionavam, o mais rápido possível.
A ONU, diversos especialistas e os países mais ricos sentaram-se à mesa e tiveram uma ideia: uma iniciativa global de educação com professores do mundo todo para levar, através de videoaulas, conhecimento para bilhões de pessoas. A maior escola da história era formada por voluntários e tinha como objetivo fazer os infectados conhecer tudo novamente, e em apenas 6 semanas.
Obviamente, a força-tarefa educacional não tinha a audácia de ensinar tudo sobre tudo nesse curto período. Ela seria uma catalisadora, disseminando conteúdos básicos para impulsionar a retomada social das pessoas.
Além de aprender a falar e escrever na sua língua natal, os Esquecidos — como eram tratados — , receberiam lições sobre a rotina humana e a vida em sociedade. A meta era possibilitar que 60% dessas pessoas voltassem à ativa.
Essa massa de gente de volta às ruas, sabendo se comunicar, sabendo o que fazer com o dinheiro e como se relacionar com outras pessoas poderia fazer as economias relaxarem um pouco, e o tempo se encarregaria delas aprenderem o resto nas milhares de escolas para adultos que surgiam diariamente.
O plano era ousado. Prometia uma resposta gigantesca em um período extremamente curto. No entanto, quem via a quantidade de professores e de voluntários disponíveis, assim como o esforço das empresas para levar internet de qualidade aos quatro cantos do planeta, tinha todos os motivos para ter esperança.
Extremamente coordenada, a iniciativa deu certo. Em um movimento humano maravilhoso, milhões e milhões de pessoas avançavam semanalmente nos “24 Estágios da Retomada” — metodologia criada especialmente para essa missão.
A data final do percurso educativo era a mesma no mundo inteiro, pois ele começara concomitantemente em todos os países. Chamada de Segundo Renascimento pela imprensa, a data prometia um novo início. O recomeço da vida até então conhecida.
As sedes das empresas foram organizadas, as mesas dos restaurantes foram postas e as escolas reformadas para receber adultos. As ruas foram limpas e os postos abastecidos. Os shoppings ofereceram música ao vivo, enquanto as lojas davam seus descontos. A dose dupla nos bares valia pela semana toda.
No entanto, a volta ao normal não se realizou. Para incredulidade de quem esperava uma retomada, as cidades continuavam fantasmas. O que aconteceu foi que quem esqueceu das coisas, não gostou muito do que aprendeu. Ou melhor, não gostou muito da suposta normalidade que fora empurrada para eles.
Para os Esquecidos, o mundo ao redor não fazia muito sentido. Quem viu imagens de engarrafamento não quis voltar a trabalhar. Quem leu sobre como a política funcionava não quis compactuar com ela.
Quem descobriu o que era um porco não se sentia à vontade para comê-lo. Quem entendeu os perigos do álcool não se aventurou na dose dupla. Quem racionalizou sobre a distância dos países não saiu comprando coisas de um país distante. Quem ouviu notícias sobre a mudança climática tratou de agir de acordo. Os Esquecidos sentiam-se desmotivados em reproduzir comportamentos que não pareciam nada normais aos seus olhos. Queriam uma outra opção, um novo caminho, um outro jeito de fazer as coisas. Mas sobre isso, nenhuma aula havia sido dada.
Leu? Deixe umas palminhas. Gostou? Compartilhe em alguma rede :)
Escrever não é fácil e ver que as pessoas chegam aqui é um baita incentivo.
Obrigado ❤