As pessoas que não podiam ficar em casa
Ano de 2020. Em algum lugar da Europa Central, um vírus fatal e inusitado começou a se espalhar. Por um motivo que não domino tão…
Ano de 2020. Em algum lugar da Europa Central, um vírus fatal e inusitado começou a se espalhar. Por um motivo que não domino tão detalhadamente para explicar agora, esse vírus atacava pessoas apenas quando elas estavam em ambientes fechados.
Seu ponto fraco era o ar livre. Rua, parque, área verde, pracinha, praia, mato, Sol, vento, chuva. Quando as pessoas estavam em ambientes abertos, o vírus desvanecia. Os países foram então, um a um, obrigados a tomar a única medida possível: proibir as pessoas de ficarem em casa.
Na verdade a proibição não contemplava apenas a casa das pessoas. Escritórios, garagens, auditórios, corredores, escadas internas, saguões, elevadores, ginásios. Era terminantemente proibido ficar dentro de qualquer tipo de estabelecimento com paredes e teto.
Não, não adiantava lugares com janelas grandes. Não adiantava paredes sem teto. Um simples beco entre prédios fazia o vírus agir e devia ser evitado. O limite exato de onde a doença atuava era desconhecido pelos cientistas.
Por exemplo, nem todos os pátios eram nocivos. Em alguns as pessoas conseguiam ficar e não morriam. Em outros, a morte era certa. A metragem inofensiva e a metragem mortal eram impossíveis de definir.
Na falta de certeza, o seguro era não arriscar. Logo, todo mundo estava fugindo de muros e paredes como se eles fossem tóxicos. Praças, parques e avenidas ficaram amontoados de pessoas, como se fossem palco de grandes protestos, porém imóveis e silenciosos. As populações estavam atônitas. Não havia para o que protestar.
Carros e ônibus eram ferrolhos. Luxos que por alguma razão não causavam perigo. Quem tinha o seu dirigiu para longe do caos, enquanto outros foram arrombados e roubados para virar um lar. Ônibus se transformaram em pequenas repúblicas para pequenas comunidades e mansões para egoístas espertos. Até aviões e barcos serviam como casa. Era isso ou dormir ao léu.
Obviamente essa foi a sorte da grande maioria de pessoas, pois nem todo mundo tinha (ou achou) um meio de transporte. Multidões vagavam soltas, sem teto e sem muito rumo.
Uma sociedade que aprendeu a viver no conforto do ar-condicionado, regulando a temperatura externa a seu bel-prazer, agora ouvia moradores de rua para aprender como resistir ao sereno, ao Sol, à chuva, ao frio. Eles eram os novos professores. Assim como os filósofos na Grécia antiga, caminhavam cercados de discípulos, explicando sobre uma vida que já dominavam.
Alguns se arriscavam invadindo lugares para pegar roupas e comidas. Eram pessoas corajosas, visto que o vírus era rápido e podia matar em questão de poucos minutos. Quem entrava em um supermercado podia não chegar com vida na seção de carnes. Era mais fácil tentar a sorte em casas menores e apartamentos térreos.
Esses estoques ociosos de comida alimentaram as pessoas nas primeiras semanas e meses. Mas, a cada dia que passava, ficar na cidade fazia menos sentido. Além do concreto perigoso, no interior era possível plantar, encontrar animais para transporte e alimentação, pescar, encontrar abrigo em florestas.
Assim, começou um êxodo urbano massivo em todos os continentes. As pessoas se espalhavam pelos campos, realizando uma reforma agrária espontânea e descentralizada. Mas as cidades tentaram sobreviver. Bancos quebraram suas paredes para tentar continuar funcionando, fábricas fizeram o mesmo para continuar produzindo, o que sobrou do governo se encontrava em barracas, outro ferrolho inexplicável. Políticos e pessoas influentes ainda tentavam encontrar soluções para a internet, para a economia, para o sistema educacional.
Sem sucesso. As pessoas simplesmente caminharam para longe e foram tocar suas vidas de outra forma. As grandes e médias cidades acabaram.
Fazem 112 anos que esse fato aconteceu. O que eu sei eu ouvi de pessoas mais velhas e alguns livros escritos à mão. Com o tempo, tudo se ajeitou. A humanidade aprendeu a viver ao ar livre e aos poucos foram esquecendo a necessidade do passado.
O dinheiro caiu em desuso, poucos mercados se mantiveram, como o da aviação e da medicina, por exemplo. Mas tão diferentes de como eram antes que seria perda de tempo tentar explicar em poucas palavras.
Poder ver a Lua praticamente de qualquer lugar, não somente entre os prédios. Pegar Sol e fazer exercícios naturalmente durante as atividades do dia, e não num negócio chamado academia, como me falaram que existia. A chuva era só água. O calor era só calor. Tempestades aconteciam, e estava tudo bem. A comida estava perto, era deliciosa e abundante. Ninguém passava fome. Um novo normal se estabeleceu.
Dizem que o vírus foi como se a natureza tivesse nos chamado. Ela nos queria de volta. Nos queria mais perto. E felizmente a gente ouviu.
Nenhuma parede, muro ou teto jamais foram construídos novamente.
Leu? Deixe umas palminhas. Gostou? Compartilhe em alguma rede :)
Escrever não é fácil e ver que as pessoas chegam aqui é um baita incentivo.
Obrigado ❤