Como um vírus do bem fez o mundo se dividir.
O vírus era considerado uma benção. Um respiro para quem vive em um mundo à beira do caos. Tem vezes que o pensamento (e as notícias) nos jogam para um lugar de desesperança e incertezas. É muito governante inapto, é muita democracia definhando, é muita guerra, é muita crise diplomática, é muita desunião, é muito aquecimento global.
Mas parece que a natureza, finalmente, decidira nos dar um alento: um vírus que imunizava as pessoas de qualquer doença. Quem o contraía não apenas ficava livre de qualquer nova enfermidade, como se curava dos males que já carregava.
Uma espécie de reset corporal. Câncer, AIDS, diabetes, condições irreversíveis, tudo desaparecia em poucos dias. Você ainda podia morrer caso se acidentasse de carro, por exemplo, o que não diminuía em nada a sensação geral na sociedade de que a imortalidade fora alcançada. Quer notícia melhor que essa?
Entretanto, o vírus não ganhou fama rapidamente. Ao contrário de outras infecções que causam sintomas facilmente perceptíveis, como tosse, febre e dores no corpo, o Vírus da Imortalidade era mais silencioso.
Mesmo com um aumento expressivo no número de altas e diminuição no número de internações, ele ainda passava batido nos prontuários. Os hospitais esvaziando era um resultado celebrado, embora não explicado.
A ficha só foi cair quando diversos pacientes de doenças crônicas ou em estado gravíssimo simplesmente começaram a se curar. Esse curioso padrão acabou por mobilizar a comunidade médica dos países onde isso acontecia para estudar a situação. Depois de muitas pesquisas e estudos, o tal vírus saiu do anonimato e virou a descoberta do século.
Euforia, alegria, êxtase. Não dá para descrever as emoções sentidas pelo corpo médico que deu de cara com tamanha sorte. Sentimentos que infelizmente não foram compartilhados pelos políticos responsáveis por esses mesmos locais. Entre eles, a notícia trazia apreensão. Os governantes tinham medo do que poderia acontecer ao mundo com uma pandemia desse tipo, e queriam agir com cautela antes da notícia sair daquele grupo. Aos seus olhos, o mundo já era superpovoado e enfrentava diariamente uma imensidão de problemas decorrentes de uma sociedade que havia crescido demais. Se as pessoas parassem de morrer, essa situação tendia a piorar.
Uma solução por fim foi encontrada, e definida em reuniões a portas fechadas. A imprensa não ficou sabendo, a comunidade internacional também não. As pouquíssimas pessoas à frente desse complô usaram sua influência e poder para impedir o avanço do vírus. A favor deles estava o fato de que a “doença” tinha atravessado poucas fronteiras. E se dependesse deles, as coisas iam continuar assim.
A principal medida tomada pelos países infectados foi proibir viagens para países fora da área de atuação do vírus. Não lembro qual foi a desculpa que eles usaram para impor esse tipo de restrição, mas em um primeiro momento ela funcionou.
O vírus só saía desses países com o consentimento dos poderosos, e quando isso acontecia era para curar pessoas que tinham dinheiro para receber tal privilégio. Foi nessa época que as “Elites Imortais” nasceram. Mas por mais que o controle fosse extremamente rígido, o vírus é um agente esperto e escapava uma vez que outra. E assim que chegava onde não fora convidado, o padrão dos hospitais vazios se repetia, alertando médicos e fazendo eles chegarem na mesma conclusão: havia um vírus que imunizava pessoas. Quando isso acontecia, a história rapidamente era abafada. O médico afastado, o repórter chantageado, a pesquisa simplesmente desaparecia.
Só que tamanho estratagema tinha suas brechas. Quando se envolve tanta gente assim para acobertar uma informação, a chance das coisas saírem do controle sempre existem. E isso aconteceu. De lenda urbana, o vírus virou realidade. Através de vazamentos, o mundo inteiro ficou sabendo não apenas que ele existia, mas que pessoas mantinham ele em segredo.
O escândalo deu início a uma revolta em escala global. O mundo todo queria ser contaminado e ia fazer de tudo para isso acontecer. As coisas começaram com protestos antigoverno, deposições de políticos e pressão internacional dos países prejudicados.
Diante da inoperância dos líderes em resolver a questão, as populações de diversos países começaram a agir por conta própria. Usando as redes sociais e ferramentas de mapeamento, elas rastrearam as pessoas que já haviam sido infectadas com o objetivo de buscar a imortalidade à força. “Os Mortais”, como a imprensa os chamavam, invadiam escritórios e casas em busca dos privilegiados, roubando roupas sujas, louças não lavadas e até, em casos mais violentos, pegando o sangue dessas com facas e tesouras. Alguns assassinatos aconteceram, mas isso não diminuiu o movimento, que apenas crescia a cada dia que passava.
Eu não participei e não julgo quem entrou nessa. Você não iria atrás desse vírus se tivesse a chance? Claro que iria.
Para diminuir a violência, os governos isolaram bairros e transformaram partes da cidade em condomínios fechados altamente protegidos. Usaram a força para manter separados os dois grupos. Os infectados aproveitando da sua condição em segurança, e do outro lado dos muros, cercas e homens armados, uma população inteira impedida de se infectar. O mundo havia decidido que o vírus não era para todo mundo e os governos compraram essa ideia. Os Mortais não tinham muito mais espaço para agir.
O tempo foi passando e os muros, que no início eram uma afronta, rapidamente viraram paisagem. A falta de troca entre as duas metades da população virou o normal. Ambas viviam vidas diferentes, frequentando apenas as partes da cidade destinadas a elas, sem se cruzar. O vírus que surgira como solução, agora era um produto. Se você estava doente e tinha dinheiro, poderia pagar para ele vir até você. A Elite Imortal mantinha para si o privilégio e cobrava caro para deixar alguém entrar em seu círculo. Já o resto da sociedade vivia a esperar uma brecha e trabalhava duramente para comprá-la. Ao contrário deles, a esperança não morria.
Leu? Deixe umas palminhas. Gostou? Compartilhe em alguma rede :)
Escrever não é fácil e ver que as pessoas chegam aqui é um baita incentivo.
Obrigado ❤