Eu torço bastante para que você já tenha visto um discurso que foi sensação na internet uns 10 anos atrás chamado This Is Water. Ele chegou até mim nesse vídeo aqui, e desde então nunca mais saiu da minha cabeça.
Escrito pelo autor americano David Foster Wallace e declarado por ele próprio, em 2005, em uma cerimônia de graduação para a turma que ali se formava, o discurso é um apelo para que as pessoas sejam mais conscientes e atentas ao percorrer as rotinas entediantes da vida adulta. Um trecho:
Existem outras formas de pensar. Posso, por exemplo, me forçar a aceitar a possibilidade de que os outros na fila do supermercado estão tão entediados e frustrados quanto eu, e, no cômputo geral, algumas dessas pessoas provavelmente têm vidas bem mais difíceis, tediosas ou dolorosas do que eu.
Fazer isso é difícil, requer força de vontade e empenho mental. Se vocês forem como eu, alguns dias não conseguirão fazê-lo, ou simplesmente não estarão a fim. Mas, na maioria dos dias, se estiverem atentos o bastante para escolher, poderão preferir olhar melhor para essa mulher inexpressiva e estressada que acabou de berrar com a filhinha na fila da caixa. Talvez ela não seja habitualmente assim. Talvez ela tenha passado as três últimas noites em claro, segurando a mão do marido que está morrendo.
Ou talvez essa mulher seja a funcionária mal remunerada do Departamento de Trânsito que, ontem mesmo, por meio de um pequeno gesto de bondade burocrática, ajudou algum conhecido seu a resolver um problema insolúvel de documentação.
Basicamente, o que ele está pedindo é que as pessoas consigam deixar de lado, mesmo que por alguns instantes, uma visão autocentrada do mundo para adotar uma visão que percebe e reconhece as outras pessoas presentes ao nosso redor. Quando fazemos o exercício de enxergar o contexto mais amplo nós adquirimos mais informações, e ao ter mais informações podemos reagir ao mundo de formas diferentes, e não só da forma clássica “o universo inteiro está contra mim” do George Costanza.
Onde entra a água nisso tudo? Bem, o discurso começa com uma fábula/anedota sobre peixes que nunca perceberam que viviam imersos em água. E a água aqui é uma analogia para o tecido social em que estamos imersos diariamente.
Há dois peixes jovens nadando ao longo de um rio, e eles por acaso encontram um peixe mais velho nadando na direção oposta, que pisca para eles e diz, “Bom dia, rapazes, como está a água?”. Os dois peixes jovens continuam nadando por um tempo, e então um deles olha pro outro e diz, “Que diabos é água?”.
(Talvez seja interessante ver o vídeo antes de continuar.)
Desde então tento viver uma vida mais consciente. E não estou falando aqui somente do momento da fila do supermercado, mas na vida como um todo. É me lembrar constantemente que eu não estou sozinho no mundo, que não sou o protagonista principal e isso tudo não foi criado somente (e pensado) para mim. É viver sob o lema, também famoso na internet, “everyone is fighting a hard battle, always be kind”.
Dessa forma, cria-se mais espaço para os outros. Mais espaço para a família, para amigos, para vizinhos, para desconhecidos, para as plantas, para animais, para ideias, para visões de mundo.
Quem não enxerga o contexto, vê apenas a si mesmo. E isso gera um mundo hiperindividualista, onde cada pessoa preocupa-se apenas com suas próprias necessidades.
Eu tenho certeza que me tornei uma pessoa mais sociável, mais compassiva e mais empática depois de começar a viver no modo “isso é água”. Uma pessoa muito mais relaxada também, menos preocupada e que se sente menos vítima dos problemas que acontecem ao meu redor.
Estou longe de ser a pessoa iluminada que sai de casa todo dia sorrindo para tudo e para todos, aceitando qualquer problema sem se irritar ou se estressar, mas nunca mais deixei de viver a minha vida de forma presente.
Anos atrás, quando descobri meu câncer, eu tive a chance de estar “do outro lado” e ser a pessoa passando por uma super barra sem ninguém saber (até meu cabelo cair e a barra ficar evidente kkkkk). Isso não me dava permissão para ser otário com ninguém, e ainda lembro com carinho das pessoas que eram gentis mesmo sem saber pelo que eu passava.
Pois bem. Terminei de ler esses dias um ótimo livro chamado How To Do Nothing, da escritora, professora e artista americana Jenny Odell. Embora o título sugira que o objetivo da leitura é aprender a não fazer nada, na verdade o livro é um manifesto a favor da atenção. A descrição do livro na Amazon diz: “Odell vê nossa atenção como o recurso mais precioso – e esgotado – que temos. E devemos escolher ativa e continuamente como a utilizamos. Podemos não gastá-la em coisas que o capitalismo considera importantes… mas assim que começarmos a prestar um novo tipo de atenção, poderemos empreender formas mais ousadas de ação política, reimaginar o papel da humanidade com o meio ambiente e chegar a entendimentos mais significativos de felicidade e progresso.”
Em resumo, o livro é uma afronta à economia da atenção, um sistema que define a nossa atenção como um bem escasso e que busca constantemente atraí-la para seus tentáculos. Nunca tivemos nossa atenção tão disputada. Cada minuto importa, e alguém está tentando tomar ele para si.
Isso não nasceu com o celular e as redes sociais, mas escalaram nos últimos anos de uma maneira jamais experienciada pela humanidade. A atenção humana está sendo perseguida a todo momento de formas muito criativas, tornando-a, na minha opinião, mais distraída e desatenta.
Se nas situações corriqueiras do nosso dia a dia, seja na fila do supermercado, no sinal vermelho, no ponto de ônibus, tomando uma cerveja com uma amiga ou em um almoço em família a nossa atenção está dividida com uma tela de celular e suas notificações, barulhos e memes que 15 segundos depois são esquecidos, fica mais difícil prestar atenção ao que acontece ao nosso redor.
Aqui um trecho de How To Do Nothing que gostei:
Experimentamos as externalidades da economia da atenção em pequenas gotas, e por isso tendemos a descrevê-las com palavras de leve perplexidade, como “irritante” ou “distração”. Mas esta é uma leitura errada da sua natureza. No curto prazo, as distrações podem nos impedir de fazer as coisas que queremos. A longo prazo, contudo, podem acumular-se e impedir-nos de viver as vidas que queremos viver, ou, pior ainda, minar as nossas capacidades de reflexão e autorregulação. Portanto, há implicações éticas profundas à espreita aqui para a liberdade, o bem-estar e até mesmo a integridade do eu.
Depois dessa leitura, a batalha entre enxergar a água à nossa volta e a economia da atenção ficou muito mais evidente para mim. Existem, nesse exato momento, milhares (senão milhões) de pessoas trabalhando para desviar minha atenção em momentos em que ela não deveria ser desviada, e cada aplicativo no meu celular busca chamar a minha atenção à sua maneira (gosto de brincar que não vai demorar muito para a Calculadora emitir notificações do tipo “Olá Luciano, já fez seus cálculos hoje?”). Querer uma vida mais presente, atenta, cuidadosa e consciente é lutar contra esses estímulos. É agir ativamente para a economia da atenção não me sugar.
E eu não quero ser sugado. Eu quero poder observar mais o mundo para ter mais contexto e mais profundidade sobre ele, para que disso nasçam relações mais significativas.
De novo volto com a Jenny:
Também exige humildade e abertura, porque buscar contexto já é reconhecer que não se tem a história toda. Contexto é o que aparece quando você mantém sua atenção aberta por tempo suficiente; quanto mais você segura, mais contexto aparece.
Estava há 9 meses sem vir aqui falar mal de celulares e redes sociais para vocês, mas não me aguentei kkkk Mas vejam bem, eu não sou contra a tecnologia. Acho elas ótimas e ainda confio no potencial que elas têm. Porém, se a gente não usá-las de forma consciente e moderada, a nossa própria consciência e atenção serão afetadas.
A nossa atenção vale muito. Para nós mesmos, nossas emoções e pensamento crítico, mas também para as outras pessoas e para o meio ambiente. Quando agimos de forma mais presente e menos automática, temos mais tempo para deliberar, discutir, entender, compreender, interpretar, devanear, ouvir, se encantar, curtir. Podemos viver de forma que nossas ações sejam uma resposta ao mundo, e não apenas uma reação impensada ou impulsiva.
Isso é água.
Isso é água.
Espero que gostem dos links:
E falando nela: estudos mostram que nossa capacidade de prestar atenção está mesmo diminuindo.
Nunca tinha visto o Diogo Defante falar sério, então foi bom conhecer seu processo criativo e visão de carreira nesse episódio do Emoção Criativa.
Que pancada: Ninguém mais precisa suportar meus pensamentos negativos.
Vocês gostam do Elon Musk? Eu estou cansadíssimo dele. E o maravilhoso John Oliver também.
Para você aí que reclama que a Geração Z não quer trabalhar, já tem um monte de estudos mostrando que as diferenças geracionais são invenção nossa, e que o verdadeiro problema são os estereótipos que criamos sobre faixas etárias.
Dica de newsletter do mês: para quem gosta de referências e tetiar sobre como as coisas são criadas, assinem a Garimpo Criativo.
“O mundo não será salvo por cabeças antigas com programas novos. Se o mundo for salvo, vai ser por cabeças novas - sem programas.” — B, personagem do livro A História de B, de Daniel Quinn
<3
Obrigado pela indicação do Garimpo Criativo, Luciano! Na minha última edição, deixei uma reflexão sobre a nossa relação com o tempo, sobre o cultivo da preguiça e dos momentos para não fazer nada. Recomendo pesquisar sobre a expressão holandesa "niksen". Muito bom ter lido seu texto para aprofundar ainda mais no tema. Abraços
já que é para deixar links:
a primeira vez que ouvi falar sobre o David Foster Wallace foi em um blog de basquete, em um texto que também mencionava a Lady Gaga
https://bolapresa.com.br/royce-white-lady-gaga-e-david-foster-wallace/
E sobre atenção, realmente piorou com o celular. O jeito é tentar ficar longe dele de vez em quando, para poder ter alguma paz sem ficar distraído com as notificações.