O país que deixou de ser país
O país nem queria muito ser país. Havia virado um apenas para se livrar de ser um outro país muito tempo atrás, na sua independência. Mas…
O país nem queria muito ser país. Havia virado um apenas para se livrar de ser um outro país muito tempo atrás, na sua independência. Mas era um, e só quem é algo pode deixar de sê-lo. Foi assim que o país pôde deixar de ser país.
Não foi um processo fácil, tampouco rápido. Por anos, a população se questionava sobre a real necessidade de ser um país, mas isso ficava dentro das mesas de bares e rodas informais, principalmente entre os jovens.
Por recém terem chegado ao mundo, jovens costumam não ter muito apego àquilo que os precede, e isso faz deles pessoas que não se prendem tanto às tradições.
Os jovens crescem, e nesse processo criam suas próprias tradições, que substituem as antigas e criam problemas para os jovens do futuro. Engraçado, mas por algum motivo essa história de não ser um país não sumiu depois que os jovens cresceram. Essas coisas de jovens possuem a expectativa de vida de uma juventude, e olhe lá. Mas essa não.
A vontade de não ser mais país acompanhou uma geração e estava dentro da mentalidade deles assim que assumiram os cargos deixados pela geração anterior. “Queremos uma independência de verdade”, diziam os habitantes.
Obviamente, na política, isso também aconteceu. Governantes falaram tanto dessa pauta que ninguém ficou surpreso quando um grande referendo foi marcado. A população do país teria a chance de decidir se continuaria sendo um país ou não. O desfecho tampouco surpreendeu. 95% queria o fim da nação, e a vontade do povo foi cumprida.
Não de um dia para o outro, mas muito mais rápido que as previsões de especialistas dos outros países, que olhavam com descrença para todo o processo. Segundo eles, o país estava cego e não percebia todos os problemas que essa ideia poderia gerar.
“Se não há país, qualquer um pode entrar? Será o paraíso de criminosos!”
“A nossa lei não permite a entrada de pessoas sem pátria pelas fronteiras, e elas não vão querer se isolar do mundo. Escutem o que estou dizendo!”
“E as pessoas que votaram para continuar sendo país, vão ser obrigadas a ficar sem pátria? Aqui elas não viverão!”
Pregavam para si próprios, pois a pátria que ia deixar de ser pátria seguiu firme com sua promessa. E foi em um ano-novo, data escolhida para o fim, que tudo começou. O país deixara de ser país. Ao contrário do que a imprensa internacional dizia, o novo não-país não tinha desprezo ou medo dos outros países, e nem queria se isolar do resto do mundo. Pelo contrário. Acabaram com o país para se abrir.
As pessoas desse lugar agora sem nome não gostavam da ideia de fronteiras. Não gostavam também da ideia de serem governados por poucas pessoas de terno a quilômetros de distância. Não gostavam de limitar culturas completamente diferentes sob uma mesma bandeira. Queriam que o lugar fosse mais verdadeiro, aberto, livre, próximo, comunitário. Um lugar aberto para quem quisesse viver lá. E esses obstáculos impediam isso.
Isso não significa que não existiam acordos. Na verdade, havia apenas um: que cada cidade definisse os seus.
Dito e feito. Algumas acabaram, virando várias pequenas comunidades. Outras simplesmente sumiram porque todo mundo foi morar fora dela. Teve a cidade onde todo mundo listou tudo que tinha e então dividiram irmãmente entre todos. Em outra as pessoas venderam tudo que tinham, distribuíram entre si e todo mundo ficou rico. Nomes dos lugares mudaram, empresas novas surgiram para resolver novos problemas, a figura do prefeito praticamente sumiu e a maioria das cidades passou a ser governada por comitês comunitários. Havia muita troca entre as comunidades para entenderem como podiam se ajudar e manter as sociedades bem.
Qualquer pessoa do planeta tinha livre entrada nesse novo não-país. Não havia alfândegas, nem raios-X. “Esse lugar também é seu”, diziam os expatriados. Muita gente ouviu esse chamado e foi morar onde seria aceita, em especial refugiados.
“Se não é um país, como vamos mostrar isso nos mapas?”
“Como a presença nesse novo lugar fica registrado nos passaportes?”
“Como vocês vão ser representados na ONU?”
“Como chamaremos as pessoas que aí vivem? Como chamaremos esse local agora?”
As pessoas vocês chamam pelo nome delas. O local depende. Ali onde tem areia vocês podem chamar de areia. O morro, mesma coisa, chamem de morro. A casa é uma casa. O resto das respostas não eram tão importantes, então nem se deram o trabalho de responder. O mundo tinha dúvidas sobre como agir com esse novo precedente, e a ignorância gerou afastamento, repulsa.
Assim, o único lugar do planeta que não possuía fronteiras, nem uma única lei, tampouco apenas um nome, um hino ou uma bandeira, era visto pelo resto do mundo como inimigo, como um problema para a liberdade, como nocivo para os acordos internacionais. O resto do mundo se sentiu excluído.
“Quem tem barreiras que nos impedem de entrar são vocês”, diziam as pessoas que viviam naquele lugar.
Mesmo sendo desprezado, cada mapa do mundo, seja em livro, seja em tela, mostrava agora um ponto inominado. Pequeno o suficiente para não ser visto como a norma, grande o suficiente para permitir a imaginação de uma nova.
Leu? Deixe umas palminhas. Gostou? Compartilhe em alguma rede :)
Escrever não é fácil e ver que as pessoas chegam aqui é um baita incentivo.
Obrigado ❤